A nova pandemia silenciosa

Lia Xan
Lia Xan 11 Min Read
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À primeira vista, a manchete pode parecer quase surreal, mas os números trazidos à tona por um artigo recentemente publicado pela revista Lancet Neurology, apesar de estarrecedores, não deixam qualquer dúvida.

Produzido pelo Instituto de Métricas e Avaliação de Saúde (IHME sigla em inglês), uma organização voltada para à pesquisa em saúde pública, baseada na Faculdade de Medicina da Universidade de Washington, na cidade de Seattle nos Estados Unidos, o trabalho, como parte do Estudo do Impacto Global de Doenças (do inglês Global Burden of Disease (GBD)), este trabalho estimou que no ano de 2021 cerca de 3.4 bilhões pessoas ao redor do mundo (ou 43% da população global) sofriam com pelo menos uma das 37 doenças neurológicas incluídas na pesquisa.

No mesmo ano de 2021, o mesmo estudo estimou que 11.1 milhões de pacientes morreram como resultado de doenças neurológicas. Como esta pesquisa não incluiu na sua estimativa as várias doenças psiquiátricas de alta prevalência, como depressão e ansiedade crônica, que no total acometem algo em torno de 1 bilhão de pessoas em todo o mundo, o valor real da população mundial sofrendo de alguma doença do sistema nervoso em 2021 pode ter atingindo algo entre 4-5 bilhões de pessoas. Quer dizer, aproximadamente 1 de cada 2 pessoas que estavam vivas em 2021 sofriam de algum distúrbio neural.

Para chegar à esta cifra alarmante, o IHME se valeu de uma colaboração de milhares de pesquisadores, espalhados por todo o mundo, que coletivamente estimaram a prevalência, mortalidade, morbidade, em termos de anos de vida perdidos ou impactados por estas doenças cerebrais, num total de 204 países.

Um dos achado mais importantes do estudo foi a constatação que a distribuição descrevendo o impacto (em anos de vida) das doenças neurológicas exibe dois picos fundamentais: um muito intenso nos primeiros dois anos de vida e um outro que começa a sua ascensão a partir dos 60 anos de vida e define o maior número de pessoas afetadas. Mesmo assim, as doenças neurológicas pediátricas e do desenvolvimento neural, como autismo e déficit de atenção, representaram 18.2% do impacto em termos de incapacidade de longo prazo.

No computo geral, estimou-se que em 2021 o mundo possuía 1.2 bilhões de pessoas (quase a população da China) sofrendo de enxaqueca, 206 milhões (todo um Brasil) com neuropatia diabética, 93.8 milhões com acidentes vasculares cerebrais (ou derrame), 84.8 milhões com distúrbio de atenção, 61.8 milhões com autismo, 57 milhões com doença de Alzheimer e outras demências, 38 milhões com injuria traumática cerebral, 24 milhões com epilepsia, 15 milhões com lesões da medula espinhal, e 11 milhões (toda uma cidade de São Paulo) com doença de Parkinson. Estimou-se também que 23.4 milhões de pessoas em 2021 foram acometidas por sequelas neurológicas crônicas da Covid-19, como distúrbios cognitivos e síndrome de Guillain-Barré.

Estes números assombrosos claramente definem a existência de uma pandemia totalmente silenciosa, uma vez que ela não mereceu nenhum tipo de cobertura da mídia internacional ou qualquer tipo de esforço global, visando não só conter a sua expansão, mas também oferecer novas formas de tratamento e acompanhamento daqueles já atingidos. De fato, um outro estudo do IHME revelou que apenas 46 (24%) dos 194 países estudados em 2017 possuíam algum tipo de política pública voltada exclusivamente para o manejo adequado de doenças neurológicas. Tal omissão é extremamente significativa quando se sabe que, por exemplo, 84.2% dos efeitos de longo prazo que acometem vítimas de derrames, a primeira causa de incapacidade produzida por uma doença neurológica em 19 das 21 regiões mundiais analisadas em 2021, podem ser prevenidas a partir da redução à exposição de 18 fatores de risco previamente identificados.

Claramente, a abordagem tradicional, utilizada até hoje, para o manejo clínico de doenças neurológicas não têm como atingir a escala necessária para tratar e reabilitar metade da população mundial. Não existe sistema público – muito menos privado – de saúde atualmente, em nenhum lugar do mundo, que possa dar conta deste verdadeiro tsunami neurológico que, infelizmente, tende a crescer ainda mais, dado o enorme potencial de expansão de uma vasta gama de doenças mentais decorrente do modo de vida moderno. Assim, novas terapias, novas abordagens de manejo clínico, do pré-natal de gestantes e por toda a vida dos pacientes, novos protocolos de reabilitação, e mesmo novas formas de atendimento clínico à distância, como a criação de verdadeiros hospitais e centros de neuroreabilitação virtuais, terão que ser implementadas nos próximos anos e décadas.

Mas por onde começar? Onde encontrar o fio da meada deste labirinto neural?

Curiosamente, ao ler o trabalho do IHME em março de 2024, eu imediatamente me lembrei que agora em 2024 comemoram-se três datas marcantes que vão diretamente de encontro da ponta do fio da meada desta verdadeira encruzilhada em que o Brasil, como todos os países do mundo, se encontrará por muitos anos. Exatamente 25 anos atrás, em julho de 1999, num trabalho publicado na Revista Nature Neuroscience, o meu grande mentor e companheiro de trincheiras neurocientíficas, professor John King Chapin, e eu anunciamos uma invenção que, um ano depois, eu batizei de interfaces cérebro-máquina.

Tal tecnologia multidisciplinar, permitiu a animais ou seres humanos usar a atividade elétricos dos seus cérebro para controlar os movimentos de artefatos robóticos, eletrônicos (como um cursor de computador), ou mesmo de corpos virtuais apenas com o pensamento. Pois bem, 15 anos depois desta publicação, ou 10 anos atrás, na tarde do dia 12 de junho de 2014, esta invenção, na sua forma não invasiva (sem precisar implantar nada dentro do cérebro de alguém), permitiu que um jovem paraplégico brasileiro, Juliano Pinto, desferisse o chute inaugural da Copa do Mundo de Futebol do Brasil, usando um exoesqueleto robótico de membros inferiores, controlado apenas pelo seu pensamento. Tal feito, sem precedentes, foi acompanhado por uma audiência global estimada em 1.2 bilhões de pessoas (quase uma China toda).

Para minha felicidade, uma bela reportagem da CNN Brasil comemorou este décimo aniversário recentemente.

Todavia, para que este chute mental fosse realizado em solo brasileiro, foi preciso criar, exatamente 20 anos atrás o Instituto Internacional de Neurociências Edmond e Lily Safra (IINELS), situado no Campus do Cérebro de Macaíba, uma cidade da região metropolitana de Natal, no Rio Grande do Norte, hoje gerido pelo Instituto Santos Dumont. Sem o IINELS, o Projeto Andar de Novo, o consórcio internacional sem fins lucrativos, formado por mais de 150 colaboradores, oriundos de 25 países, jamais teria conseguido implementar uma interface cérebro-máquina e desenvolver o primeiro exoesqueleto robótico, controlado diretamente pela mente humana, a tempo da abertura da Copa 2014. Além de pesquisas na área de neuroengenharia, o ISD oferece um programa de pré-natal completo e totalmente gratuito para gestantes de alto risco da região metropolitana de Natal. Apenas em 2023, foram mais de 60 mil consultas realizadas pelo Centro de Educação e Pesquisa em Saúde do Anita Garibaldi do ISD.

Sem nem mesmo saber à época, tanto o protocolo de neuroreabilitação, desenvolvido pelo Projeto Andar de Novo, que até hoje permitiu que dezenas de pacientes paraplégicos mundo afora voltassem a sentir o prazer incomensurável de voltar a caminhar eretos, depois de anos presos à uma cadeira de rodas, como o estabelecimento do programa de pré-natal do ISD, podem oferecer um verdadeiro primeiro passo para se encontrar o fio da meada e, quem sabe, começar a desenrolar o emarando desafiador imposto pela explosão dessa nova pandemia.

Eu digo isso porque a combinação destes dois protocolos – de pré-natal de alto nível e de neuroreabilitação – são a chave para abordar os dois lados da distribuição de casos obtida pelo IHME no seu estudo de doenças neurológicas. Foi com este intuito que, recentemente, eu criei um novo consórcio internacional, denominado “Treat 1 Billion” (Tratar 1 Bilhão, na língua Pátria), com o intuito de estabelecer uma rede de colaboradores por todo o mundo que visa introduzir novas terapias – como as interfaces cérebro-máquina não invasivas – novos protocolos de neurorehabilitação e até mesmo novas estratégias de atendimento em grande escala , baseado num novo conceito de telemedicina, com o objetivo, a longo prazo, de construir barreiras que possam mitigar os danos causados por este verdadeiro diluvio neurológico.

Tudo isso, quem diria, em apenas um quarto de século! Graças a uma ideia de boteco – ligar cérebros às máquinas –, um chute de Copa do Mundo, e uma palmeira chamada Macaíba.

Como dizia Fernando Pessoa, “tudo vale a pena se a alma não é pequena”!

Sim, senhor Fernando! Valeu muito a pena!

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